Arrumando o pequeno escritório, jogando coisas
fora, abrindo espaço para iniciar a rotina de trabalho, encontrou os recortes
de jornal: "Faleceu sábado de ataque cardíaco fulminante" dizia um
deles. Os outros repetiam a história do ataque cardíaco, mas ela sabia, desde
aquela época que essa não era a verdade. Líder estudantil do seu tempo foi expulso da Universidade por ter opinião. Perseguido na cidade, viu roubarem os seus sonhos e resistiu. Seguiu para a Guerrilha do
Araguaia, lá foi preso, torturado. Quando ela era criança, não se falava disso.
Já adolescente, com a abertura, quando estudava história, ele era
mencionado, junto a alguns outros amigos da família "Ele fez parte da
Guerrilha. Foi preso, torturado. Até hoje passa por uns períodos de depressão."
Nada mais. Toda uma geração traumatizada, não conseguiam muito falar do
assunto. Tudo muito recente, talvez. O medo ainda uma sombra, logo ali, a
espreitar. Ela imaginava um homem adulto, barbado, preso por uns dias, sofrendo
duras torturas. Sentia por ele.
Nos tempos de faculdade, fazia mais e mais
perguntas, mas como as informações vinham sempre a conta gotas e apenas com muita
insistência, resolveu ir atrás das histórias por si só. Na leitura de um livro,
o choque. Tinha apenas dezessete anos quando fora preso. "Um menino! Uma
criança!" E ficara preso por cinco anos, sem julgamento, sem direitos. Ficou ali, imaginando o que seria
ser preso aos dezessete, o que seriam cinco anos de isolamento, de tortura...
Comparou suas vidas, sua liberdade, suas festinhas, sua luta, sua dor. Era três
anos mais novo que ela então. "Uma criança! Um menino foi torturado
por cinco anos no meu país!" Foi então que se deu conta, todos meninos e
meninas, todos praticamente crianças... Até hoje, quando lembra disso, o
coração aperta, um nó se forma na garganta, uma dificuldade de respirar...
Encontrando o recorte de jornal, repetiu-se o
choque da juventude, quarenta anos, um ano mais novo que ela hoje. "Tão
jovem! Tanto ainda pela frente!" No jornal, o ataque cardíaco fulminante.
Entre amigos mais próximos e família, recorda-se, corria outra história.
Morando sozinho, andava deprimido, Era Collor, sequestro de poupança, ameaça de
hiperinflação, corrupção... No fim de semana, sozinho, trancara as portas,
vedara toda a cozinha e ligara o gás. Deixou filhos, deixou amigos que o
admiravam, deixou o mundo que ambicionava mudar. Desistiu! E quem poderia
realmente culpá-lo. O menino de dezessete anos enfrentou e sobreviveu ao
inimaginável. O menino de dezessete anos fez o que pôde, por mais de vinte
anos, depois de ter seu corpo e alma humilhados, eletrocutados, espancados,
destroçados. O homem de quarenta anos deve ter lembrado daquele menino, deve
ter pensado: "Uma criança! Como se pode tirar tudo de uma criança?"
Deitou-se, esperou e partiu.
Lembrou ter questionado a notícia: "Por que não falam a verdade?" “É preciso poupar os
filhos!", diziam. Em nenhum jornal apareceu a história como ela ouvira. Nunca se discutiu o
peso insuportável daquela destruição. E ela nunca entendeu! Hoje, vê aí,
instaurada, a Comissão da Verdade, ainda lutando para que se abram os
olhos dos filhos, para que acordem todos os filhos, para que não se repitam mais
os extermínios dos direitos, dos sonhos.
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