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Showing posts from 2018

Clarice disse

Clarice Lispector disse “viver ultrapassa qualquer entendimento”. Hoje é aniversário de Clarice e escrevemos todas em volta da mesa. Não nascemos na Ucrânia. No máximo, umas vieram da beira do mar e outras brotaram aqui mesmo, neste cerrado em que nascem vermelhas Caliandras.  Em Clarice pensamos hoje. E juntas em volta da mesa, escrevemos e partilhamos escritos. Mulheres que somos, hoje, unidas em torno deste ofício de desnudar-se at ravés das palavras tal qual o fez Clarice, embora cada uma diferentemente.  Admiro, nelas, os cabelos que caem aos olhos, os fios que escorrem pelas nucas, as canetas que correm pelo papel seguradas por mãos urgentes, e poucas vezes hesitantes, o tec tec do teclado dos laptops. Admiro a fé e a dúvida que compartilham no humano e no divino. Reconheço sua beleza e felicito-me por partilharem comigo e deixarem um pouco de seu ver e seu viver.  Sentadas em volta desta mesa, não interessa se somos Clarice. Não precisamos ser. Homenageamos Clarice

Gentileza em tempos de selvageria

Plantar gentileza em tempos de selvageria Escolher o sim ou o não Perceber que o verde das folhas não é um único verde Cada uma em suas nuances, suas finas curvas e linhas Como rugas que caminham em nossas faces Cada tom, bandeira, água, amarelado Como os envelopes de cartas de um primeiro amor Eterno em devaneios Leve em bolhas de sabão E o não saber o que é reto, o que é correto e certo se não o íntegro de si que é nada além da matéria do sonho e o concreto do desejo e do sexo. Essa busca pelo que é lá no fundo de si Que salta daqui para ali Que não sabe mais ser contido em um continente oco que um dia coube o mundo Hoje vazio e entupido Como se pudesse ser tudo ao mesmo tempo que vácuo O ontem e o amanhã no mesmo barco porque não se sabe o que é um ou o outro E toda essa história de sim e de não é tão balela quanto essa ideia de gentileza em tempo de selvageria Suportaria talvez um dia? Duraria quem sabe o sopro de

Tell them

 Tell them my friends are kept awake in the dark Tell them the ones who sleep are on drugs Tell them my students come to the office crying Fearing for their love, fearing for their lives Tell them youth’s eyes show no spark Tell them we see their evil time machine Tell them the brains are calculating scape routes Tell them the shrink’s office is full Tell them I grit my teeth at night Tell them we now don't know what to do Tell them we were doing other things when they interrupted our dream schemes We were writing poetry taking photographs dancing on the streets raising humanity in our kids Tell them they disturbed our love making and shattered our  loving dreams Still, tell them they won’t be there forever Tell them they can never ever win Tell them hatred is always temporary Tell its pesticide poisoned fruit is rotten And will not thrive And you can tell them they can hurt us, tell them we know, because we love They c

Para dentro é para onde vou

Lavando os copos e as taças de espumante que deixei para depois, os copos e taças da última Oficina que coordenei e repousaram ali no fim de semana. Sábado brindávamos o sentimento bom de criar e compor o mundo, de partilhar e acolher o outro. Domingo votávamos e hoje lavo os copos e taças do sábado. Enquanto lavo, me pergunto, como seguirei um trabalho que pretende abrir caminho para a voz de cada um, a voz única consonante e divergente de cada um em um mundo que só quer ouvir “Sim, senhor!” Será possível por muito tempo continuar construindo o que só pôde ser imaginado após as portas se abrirem? Lavando os copos e as taças, precisei parar, sentar e aqui colocar para fora o que me vai por dentro triste. Não quero conviver mais com tanta gente, não quero mais saber o que tanta gente pensa. Não era assim que vivíamos antes das redes sociais e não somos obrigados a viver assim. Nos últimos tempos, nos últimos votos, fui apresentada ao que pensa gente demais, gente educada,

Edson, o Gênio

Edson era muito esperto! Mamãe sempre dizia. Tudo o que falava, ela logo alardeava: "Não é um gênio?!?" A família era cegueta E em terra de cego quem tem um olho é rei ou o capeta! Edson acreditava que o que via com seu olho só era tudo o que havia E assim prosseguia! Mas Edson dormia no ponto Perdia todos os bondes E comia tantas, mas tantas, bolas que um dia rolou ladeira abaixo e se acabou no precipício. Fim do Edson! Amém!

Pilha

Pilha pra carregar brinquedo Pilha pra funcionar relógio  Menino pilhado  que tem formigueiro na bunda  sem botão de desligar Botar pilha em amigo  Pilhar alguém pro bem ou pro mal  Acabar a pilha da motivação  Chorar o saque e a pilhagem A pilha de roupa no tanque A pilha de conta a pagar  Estar uma pilha de nervos  Trocar a pilha da lanterna  pra no escuro não ficar E tem pilha palha E tem pilha alcalina  Que faz Coelho bater tambor  Pra vida toda e mais um dia  E quem quer tambor de Coelho pra sempre? Um dia a pilha tem que acabar Nem que seja pro Coelho descansar

Resisting in Poetry

“The real poet is always a resistance force. The false poet, however, regardless of the causes he argues to advocate, is always conniving”, the Portuguese writer Sophia de Mello Breyner Andresen stated this in an interview in 1963. One year previous to the military coup d’état suffered by Brazil  which brought us twenty years of dictatorship and an authoritarian and antidemocratic inheritance that keeps so many of us still hostage  as if we were still living a Stockholm syndrome of sorts. Today, 2018, her words comfort me in my poet’s fate, in my truth and in the fact that I stand surrounded by other very real and resistant poets. We resist together, seeking light in these dark times, in the search of a country where love would be the empire and diversity would triumph. It is in diversity that beauty resides, it is in beauty that poetry inhabits. The beauty found in our day to day struggles, the beauty found in the truth and battles we face, the beauty found in the sweat of our

Resistir na Poesia

“O verdadeiro poeta é sempre um resistente. Mas o falso poeta, sejam quais forem as causas que diz defender, é sempre um conivente” disse Sophia de Mello Breyner Andresen, escritora portuguesa,  em entrevista em 1963. Um ano antes do golpe militar que sofreu o Brasil, em 1964, e que nos trouxe  vinte anos de ditadura e uma herança antidemocrática e autoritária que nos prende a tantos como se vivêssemos ainda uma síndrome de Estocolmo.  Hoje, 2018, suas palavras me consolam no destino de ser poeta, na minha verdade e no fato de estar cercada de verdadeiros e resistentes outros poetas. Resistimos juntos, na busca da luz nessas trevas, na busca de um país em que impere o amor e triunfe o que é diverso.   É no diverso que reside o belo, é no belo que mora a poesia. O belo de cada dia, o belo da garra e da luta, o belo do suor do trabalho, do olhar com respeito e amor, da verdadeira fé no humano.   Sophia nos alerta, também, lá em 1963, que “a poesia é uma form

Pão e Cerco

Um rapaz negro e magro, camiseta e bermudas largas, maiores que ele, me vê sentar à mesa da padaria e se aproxima. O grupo com quem anda já havia me abordado na chegada, quando saía do carro. Eu disfarçara o incômodo por trás de uma pressa mais exagerada: "Agora não posso. Depois! Desculpe!" Entrei pensando no risco de encontrar o carro arranhado na volta. "O risco do risco..." O rapaz que se aproxima pede o que eu já esperava que pedisse, um lanche, para a família, ou pelo menos para filha pequena. A filha pequena. Meu coração encolhe no peito. Prometo comprar algo para a menina quando for pagar a conta e fico aqui, escolhendo mentalmente algo que dure mais, que renda mais, que alimente mais, quem sabe dê para a família toda: um saco de pão, uma bandeja de presunto, uma caixa de leite, talvez... O dono da padaria chega manso do meu lado. Pergunta se o pedinte me incomodou. Respondo que não. O dono da padaria me informa que esses pedintes andam agora por aq