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O filho que não ficou

Eu me lembro de esperar um filho que nunca veio, um filho que nunca ninei nos meus braços. Eu me lembro de esperar um filho que teria os cabelos do seu pai, seu olhar bondoso. Ele seria curioso do mundo e eu acompanharia todas as coisas que ele veria com seus olhos de encantamento. Tudo seria novo para os seus olhos novos, como dizia a música que eu ouvia enquanto o esperava. Eu me lembro de sonhar com seu futuro, seus sorrisos. Eu me lembro das esperanças que guardava para ele. Ele não me quis, esse filho. Ele não ficou.

Ele não estava interessado no parquinho na frente do prédio em que moramos. Não estava interessado em minha mão segurando a dele enquanto caminhava seus primeiros passos. Ele não ligou para as flores, folhas e gravetos que caem das árvores na nossa vizinhança. Não quis ouvir as canções de ninar levemente desafinadas que eu ia cantar ou as histórias que eu ia contar na hora de dormir. Ele sequer se importou com o leite, todo aquele leite que já estava ali esperando por ele. O leite que uma pílula ajudou a secar. O leite que jorrou dos meus seios, meses depois, em um pesadelo.   Todos os planos, todos os sonhos, todo o amor que eu guardava para ele não foram suficiente para fazê-lo ficar.

Eu quase morri tentando trazer esse filho ao mundo, mas isso também não o comoveu, nem o convenceu a ficar. Eu sobrevivi, incrivelmente. Eu estou aqui. Eu vi outras crianças vindo ao mundo. Eu as vi querendo ficar. Eu fui posta de lado por algumas mulheres. Marcada, manchada, tornei-me, porque meu filho não quis ficar. 

Duplamente punida como seca, incapaz e indesejada. Recebi a punição com perplexa tristeza, mas sobrevivi. Vi outras crianças desejadas hesitantes a vir. Vi tantas mentiras contadas por mulheres apavoradas por serem marcadas secas, inférteis, incapazes. Eu vi suas mentiras machucando-as, machucando outras que seguiriam o mesmo caminho depois, solitárias, isoladas, indesejadas.

Mas também houve crianças que ficaram. Eu as recebi de coração aberto. Olho para elas com felicidade. Eu as vejo crescer com amor. Mas uma vez ou outra, eu me lembro. Quem não lembraria? Eu me lembro que houve, uma vez, um filho, meu filho, e ele não ficou. Ele não quis ficar.

Escolhi outros caminhos. Escolhi construir outro castelo com os pedaços daquele que desmoronou. Levou tempo, muito tempo, mas acho que é um belo e sólido castelo. Escolhi a vida e deixei o resto no passado. Acho que fiz a coisa certa. Sou uma pessoa feliz hoje. Diria que vivo uma vida bastante feliz. 

Ainda assim, eu sei o que sente alguém quando seu filho não quer ficar. "A vida é dura!", às vezes. "Azar o seu!", aguente aí. "Merda acontece!", como se diz em inglês. Enfim... O melhor que se pode fazer é aprender alguma coisa com tudo isso, se você puder, quando você puder, do melhor jeito que puder. Algo que amplie sua forma de ver o mundo e o sofrimento dos outros.Você tenta. Em geral funciona. Quando não faz de você apenas mais impaciente com as mesquinharias da vida. Eu mesma tento e funciona na maioria das vezes. Mesmo assim, de vez em quando, volta para mim um sentimento. Retorna para mim quando há perda e separação, quando a vida não me dá alternativa. Surpreende-me e me machuca o sentimento,  a dor, o fato de que esse filho, meu primeiro filho, não quis ficar.



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