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Maio, 2017 - Fim de tarde em Brasília

Um burburinho de barzinho no fim de tarde. Tudo parece igual. Amigos se encontram no Café, grupos ocupam as mesas maiores. Adoram sentar-se ao lado de quem lê um livro, de quem está só. Desconfiam dessa solidão e afrontam-na.   Alguém solta uma gargalhada alta.   Tudo normal, tudo como antes.

A música contorna as conversas e risadas: “Cai o rei de espadas, cai o rei de ouro, cai o rei de paus, cai não fica nada…” Nada é, na verdade, como antes, como o dia de ontem. Hoje, o ar que se respira é grosso, agressivo e sufocante. Nada, abaixo da epiderme do mundo está igual. A brisa leve não engana. Refresca o corpo, mas a alma treme.

Agora, toca Roda-Viva. “Como pode? Ontem mesmo era ano 2000.” Quando o golpe se deu e as ideias estapafúrdias começaram a surgir com projetos que tinham o nome de músicas da minha infância, regravações dos anos 80 começaram a entupir os programas de rádio. Hoje, Elis e Chico ressurgem nesse Café, fazendo o sentido que já não faziam há tantos anos. Apertam o meu peito, me fazendo lembrar que, apesar da aparência leve, nada é mais o mesmo, tudo pode ser pior. E é preciso fazer algo, para além da superfície, antes que seja tarde.

É preciso fazer algo, mas do canto dessa minha mesa, vejo dois rapazes que se encontram. Já estudaram comigo, se abraçam e se dão um suave beijo. Hoje, não tenho muito o que dizer, então permaneço aqui quieta, observando. Sentam juntos, um carinho no rosto, um sorriso. Ricardo e João. Ricardo foi meu amigo por tanto tempo, até a época da faculdade, João era amigo do meu irmão, do time de judô. Era bravo, o João. Ricardo era lindo. Ainda é. Sopra o cabelo que cai no rosto e eu sorrio. O mundo não é o mesmo, mas algumas coisas não mudam. O hábito juvenil permanece. Não lembro se se conheceram por nosso intermédio. Tanto tempo…

Fico feliz em vê-los juntos. João parece tão mais leve, junto à Ricardo. Peço uma taça de vinho e uma água da casa. Ouço João perguntar, rindo: “Tu não ia cortar o cabelo, Ricardo?” O outro respondendo  “Cortei! Não percebeu?” “Mas tá soprando essa franja do mesmo jeito! Cortou o quê? Um milímetro, né?”   João corre os dedos pelo cabelo do outro. Riem juntos.

Tomo um gole do vinho que chega. Pelo menos uma coisa boa, ver amigos que se encontraram, ver amigos felizes. “Ouviu o pronunciamento hoje?” Ricardo pergunta. O outro assente com a cabeça. “Acho que só sai mesmo na marra, né? Muita cara de pau!” Eles pedem umas cervejas para o garçom parado na mesa do lado da minha. O caminho do olhar de Ricardo passa por mim e volta. Me vê e sorri, faz sinal para João e caminha agora na minha direção. O Bar toca agora Belchior, que morreu há pouco: “É você que ama o passado e que não vê que o novo sempre vem...” Eu tomo mais um gole do vinho e levanto para falar com meu amigo. 



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