Skip to main content

Mulher Trófeu

Gripada, entupida, o nariz ressecado ardia ao tentar respirar, ferido.  Lenço de papel por todo lado. Aquelas bolinhas amassadas. Tinha passado o dia de pijama, um robe de flanela por cima. Arrastava o cinto do robe aberto pelo chão. O celular já tinha tocado umas três vezes. Não quis atender. Primeiro, porque não tinha voz. Depois, porque não tinha o que dizer. E era ele, ela sabia. E ela tinha certeza que ia ouvir um sermão. 

Lembrava vagamente da besteira que tinha feito. Não queria saber os detalhes. Ele sabia que ela não queria ter ido. Festa de rico chato. Uma pista de dança enorme e uns gatos pingados dançando os mesmos movimentos ensaiados, com muito cuidado para não assanhar a chapinha, nem derreter o gel. "Gente errada com a conta corrente certa!" A turma era péssima, mas a bebida era farta. "Acho que nem eles se aguentam se não encherem a cara." Provou um drink azul. Rafael conversava com um cara de sorriso tão simétrico que era impossível que fosse real. "Aqui até os dentes são falsos", pensou.  

Enquanto Rafael conversava com o "garoto Cepacol", escolhendo palavras que ela nunca tinha escutado saírem da boca dele, ela tentava segurar um sorriso amarelo, acorrentada pelos dedos do rapaz entrelaçados aos seus. Por que se submetera?" Nem o vestido tinha sido escolha dela. "Quando tinha virado isso?" Uma mulher troféu!Um bibelô sorridente." O vestido bege fora entregue na casa dela com um cartão digitado sem assinatura, provavelmente ditado pelo telefone à vendedora: "Porque quero você, hoje, linda!" Ele estava era querendo enquadrá-la nessa turma amarela. Odiava bege! Odiava tons pastéis. Essas cores de quem já morreu e ainda não sabe. "Já estou aqui, o jeito é aguentar!" Com a mão livre pegou outro drinque, um alaranjado dessa vez, bebida da moda. 

O telefone tocou mais uma vez: "Não desiste mesmo, né? Quem visse de fora podia pensar que quer saber de mim, como estou, que se importa. Mas não, o que ele quer mesmo é me esculhambar! Atendo é porra!" Caminha arrastando os pés até a cozinha. Bebe um copo de água gelada. O frio da água, a água gelada. Já não aguentava mais a conversa entediante, olhava as estrelas, mantinha o sorriso: "É com certeza investimento lucrativo, blá blá blá, mas você precisa ter os contatos, blá blá blá, eu consigo pra você por que fui eu, blá blá blá, eu, eu, eu..." Ela lá sorrindo, já doíam as bochechas... sorrindo e bebendo todos os drinques que passavam. Até que em um desses blá blá blás, o gosto do último drinque subiu, voltou. Se desvencilhou dos dedos, das mãos, dos braços de Rafael e caminhou apressada para onde achava ter visto o banheiro. O jardim muito mais cheio de que quando haviam chegado, as pernas cambaleantes, o gosto amargo na boca. Acelerou o passo. Quando viu já pisava a superfície azul, iluminada. Afundou.  A água congelante da noite cobriu-lhe pernas, corpo ecabelos. Entrou pelas narinas, pela boca. Batendo pernas e braços em desespero, conseguiu subir. 

Quando emergiu, tossiu muito e alto. Recuperando a respiração percebeu que  inúmeros olhos miravam-na, com suas pálidas feições, suas roupas iguais, seus cabelos impecáveis. Não se mexiam, apenas olhavam. Explodiu em uma gargalhada alta, sonora e riu e riu e não parou mais de rir. Nem quando Rafael a tirou da piscina, cobrindo-a com seu paletó, nem assim, parou de rir. Foi gargalhando até o carro, ele mudo. E agora é isso, o resultado é  essa gripe do cão!  "Mas tudo bem! Valeu à pena!" O celular tocou mais uma vez, ela puxou o telefone do do  carregador , talvez com muita força,  porque arrancou aparelho, carregador e até o espelho da tomada veio junto. 

Com o aparelho na mão, caminhou até a varanda. "É isso, Rafael! Acabou! Suas arrogâncias não ouço mais!" Deixou o telefone cair ali do sexto andar.Segundos depois viu o aparelho espatifar-se. Virou-se de costas, caminhou lentamente. Catou um rolo de papel higiênico no caminho. Os lenços, já tinha usado todos, chutou algumas bolinhas de papel. Parou na porta do quarto e assoou o nariz sonoramente. Caminhou até a cama, jogou-se nela de bruços e caiu no sono. Dormiu feliz. 

Comments

Popular posts from this blog

The kind of person who lights candles

  I am the kind of person who lights candles. This is now, not then. it is a recently acquired habit, one that has done me well. I light up candles every day. In the beginning of each class I set up an intention, I focus and I light the candle. I ask myself to be the light, to be the container, not the conduit. I am now the kind of person Who walks barefoot on the grass of my backyard and lets herself shower in the improbable rain of Brasilia in May.  The four elements rest now on my desk making my therapist smile when told about them, making her proud of myself and my journey. I am the kind of person that feels the connection with the elements, and nature and the universe, so new. I am again a newborn being. And it is not the first time, I have once died and it’s no secret. This time, however, I did not have to die. I had only to shed the old skin, the one who served me no more. I am still the kind of person who looks in the mirror and who wonders who this new being is. This new self

No espelho

  Olhei hoje para o espelho e me vi mais serena, me enxerguei com mais leveza. Não que esteja de fato mais leve, eu acho. Ou será que estou? Tenho ainda infinitas incertezas e dúvidas aos milhares, mas a imagem que me olhou de volta do espelho, não me olha com tristeza, dor pânico.     A imagem que vejo nesse espelho é de     calma, no olhar certa paz, talvez de se entender humana, imperfeita e aceitar essa condição.     Aqui, deste lado que estou, me observando no espelho, sinto ainda o coração encolher como se uma mão o quisesse esmagar. Encolhe-se para sobreviver e expande-se em seguida. Ao encolher-se, a respiração dá uma pausa e uma bolha de cristal sobe em refluxo, pausando ali no meio da goela. Assim que pode, o coração retorna a seu pulsar, seu ir e vir. Permanecem ali as dúvidas, as exigências, as demandas, mas também os desejos de só ser, irresponsavelmente ser e atender a cada quimera. Porque a vida é curta! A vida é sopro!    E o outro? Os outros? Todos os outros?  É precis

Sobre os artistas - Para Bruno Sandes

  Créditos da imagem: Jacobs School of Music Marketing and Publicity