No noticiário, a imagem de uma jovem noiva na frente de um helicóptero, um sonho romântico de grandeza e o desejo de surpreender o noivo com uma chegada glamourosa na cerimônia. Um voo curto. Há cinco minutos de distância do salão, em que esperava o noivo, a família e quatrocentos convidados, jazem os restos dos sonhos de um jovem casal. O dono do salão fala ao repórter, lágrimas nos olhos, e conta de seu sofrimento e dificuldade em informar, primeiro, o noivo, que urrou e caiu de joelhos de dor; depois, os convidados, que o encararam em silêncio e descrença.
Isso foi ontem e eu não consigo tirar essa história da cabeça. Não consigo faze-la ir embora. Por quanto tempo permanecerá comigo, eu não sei, mas me pergunto se será como uma outra história, que uma amiga uma vez me contou, sobre um colega de trabalho que morreu de repente em uma manhã de quinta-feira. Ela contou que, na segunda seguinte, o departamento em que trabalhavam celebrava, como sempre fazia, os aniversariantes do mês e que usaram a mesa do colega morto para servir o bolinho e as bebidas da comemoração. Contou-me, então, que não disse palavra, mas que teve que correr para vomitar no banheiro. Ela nunca esqueceu essa história, e nem eu.
Imagino por quanto tempo essa noivinha, de pele marrom, como a maioria das brasileiras, com seu longo negro cabelo de grossos fios, em seu vestido branco brilhoso e bufante, permanecerá em meus pensamentos, quanto tempo sofrerei a dor de seus sonhos perdidos, não realizados, toda a felicidade e todos os pequenos e grandes dramas de uma longa vida de casada que ela não terá. Dói em mim, uma dor aguda no peito e um nó que sobe e desse na garganta.
Uma foto foi tirada da noiva em frente ao helicóptero que levou sua vida. Ela pretendia mostra-la a seus filhos, um dia, a foto de seu primeiro voo de helicóptero, a primeira vez que decidiu fazer algo aventureiro e surpreender o amor da sua vida. Eles sentariam em volta da mesa da cozinha e fariam gozação dessa história porque, para eles, ela era uma mãe e uma mãe não tem aventuras. Sua última foto foi um retrato feliz. Não permaneceu deitada em um hospital, cheia de tubos e equipamentos, sendo virada de um lado para o outro e cutucada de hora em hora por incontáveis agulhas. Ela subiu aos céus cheia das maiores esperanças e sonhos.
No helicóptero morreu outra mulher. Uma romântica, sem dúvida, pois ganhava a vida tirando fotos de casamentos. Uma romântica que precisava ganhar a vida, pois, grávida de seis meses, subiu no helicóptero decididamente, porque nada de ruim pode acontecer quando se faz coisas por amor, para o amor. Se fosse eu, provavelmente não teria subido nesse helicóptero, mas essa sou eu hoje. Eu sei que coisas horríveis podem acontecer. Há quinze anos teria sido diferente. Eu era diferente.
Essa jovem fotógrafa, grávida, talvez de seu primeiro filho, prestes a nascer, acreditava na vida, acreditava no amor, e tinha que ganhar a vida. Penso no seu marido, na família, nas roupinhas guardadas em um quarto de bebê decorado. Imagino que levará todas as roupinhas dali enquanto a família vive esse luto injusto em dobro. Imagino a raiva que o marido sentirá, a ira e o desespero de descobrir-se incapaz de voltar o tempo.
O helicóptero invade meu pensar, a máquina em si, e eu posso ouvir seu ruído alto, suas hélices rodando, o vento que elas provocam. Vejo a noiva lutando para subir nele sem destruir o lindo trabalho do cabelereiro, segurando a cauda do vestido de lado. Ela talvez tenha se indagado se teria mesmo sido uma boa ideia alugar esse negócio. Ela talvez tenha pensado sobre a inutilidade dessa chegada glamourosa se, no fim das contas, aparecesse na cerimônia com o cabelo de uma bruxa enlouquecida.
Espero que ela se tenha ido com um piscar de olhos. Espero que ela tenha ido inconsciente. Espero que tenham todos morrido instantaneamente. Prefiro pensar que o vestido da noiva permaneceu branco, puro como seus sonhos. Prefiro pensar nela em seu imaculado vestido marfim, em um caixão de cristal, um tipo de bela adormecida, pronta para acordar com um beijo de amor verdadeiro. Sei que não é assim. Eu jogo esse pensamento para longe, mas ele retorna, o vestido branco destruído de sangue. E eu penso nas pessoas que tiveram que retirar o corpo dos escombros, esse corpo e o corpo da jovem fotógrafa grávida.
Eu tento buscar razões que expliquem um acontecimento assim. Não encontro nenhuma. Nunca haverá explicação. Coisas horríveis acontecem, eu lembro a mim mesma. Elas acontecem. E não tenho a menor ideia de porque essa máquina simplesmente caiu do céu, acabando com tantos sonhos. Não consigo achar explicação e talvez por isso continue pensando nelas, nessa jovem noiva, nessa fotógrafa grávida, nas pessoas sem rosto que ficaram para chorar por elas. Eu sou parte da sua dor e eu quero gritar que não é justo. Eu sou parte dessa dor e quero dizer que isso nunca deveria ser permitido. Quero informar a alguém que algo assim nunca deveria acontecer, mas não há ninguém para contar. Não há ninguém a quem informar. E eu fico, aqui, pensando nelas.
Lindo texto. Mas que história mais triste...
ReplyDeleteLindo texto... Mas que história mais triste...
ReplyDeleteObrigada, Lady Starlight! Uma dessas coisas que a gente precisa escrever, sabe?
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