Skip to main content

Dia Noventa e Alguma Coisa - Notas da Quarentena



Sento na varanda de casa.  Espalhados pela mesa estão livros, tintas e pincéis. O silêncio compõe-se do contínuo som da panela de pressão ao fogo, pios de pássaros e ocasionais carros que aceleram motores por trás do alambrado verde que erguemos no lugar da baixa grade de antes. Há planos de uma cerca elétrica. Planos meus de uma cerca elétrica, de que não gosto e a que rejeito, mas fazem parte da ideia de vida segura para nós, para nossas filhas.

Dia noventa e alguma coisa da quarentena de 2020. Será que já passamos de cem? Mais de cinquenta mil mortos foi a informação de ontem, mais de um milhão de casos. Uma grande cidade do país doente, talvez a população de um pequeno país da Europa. Mais de um milhão... Hoje, quatro e três da tarde, certamente mais. Não conheço nem um morto. Alguns casos são parentes de amigos, um ou outro conhecido. 

O sol perpassa as folhas das árvores que não plantei no jardim e aquece meu rosto. Ilumina a mesa e a grama, de maneira irregular, neste pequeno quadrado verde  que nos é respiro.  Pinta quadradinhos menores de verde limão, esmeralda e bandeira. Provoca uma refração nos copos em que molho meus pincéis. Um quase prisma projeta sua luz no meu caderno em que escrevo só. 

Talvez eu corresse demais antes da quarentena. Talvez me sentisse responsável por muitos. O isolamento social forçado não parece ter me feito mal. Não preciso estar em tantos lugares, cumprir tantos compromissos. A vida pode correr mais lenta, embebida de tinta e tempo. Não me desesperaria se fossem só eu e os meus. 

A vida aqui transformou-se da presença para a tela e nos adaptamos. Lembro que havia mais entradas e saídas, momentos para compartilhar, cafés a tomar juntos, abraços.  Percebo o cansaço da voz ao fim dos encontros virtuais do dia, mas nos acostumamos. Dormimos tarde, acordamos cedo por obrigação. Dormimos tarde e acordamos tarde nos fins de semana porque podemos, porque precisamos. Café da manhã é almoço. O almoço é quase janta. 

O dentro não me é um problema. Dentro de mim, encontro infinitos mundos. O fora é que é a questão. O fora é triste, é dor e é desesperança de alcançar um caminho melhor.

De fora, poucas notícias boas. A sombra da morte cobre a periferia das cidades, o rei está louco. O rei sempre foi louco. E burro. O ódio o levou aonde está. Dia desses, Roberto assistia o jornal das nove e sentei-me a seu lado. Nesse dia, a noite foi eterna. Duas horas, três horas, quatro horas da manhã.  Às sete, acordei e às oito comecei o trabalho. Decidi nunca mais ver as notícias à noite. Conheço pessoas que desistiram das notícias. Quem pode julgá-las? 

Encontraram o Queiroz. Tão bem escondido estava essa laranja podre. No quintal do filho do rei mal coroado. Quanta inteligência foi necessária para localizá-lo? Agora foi encontrado. Agora e mais uma vez, o rei está nu. Ah, mas já não há mais espaço para a plebe, rude plebe... Perdeu o bonde e caminha agora de fora. O rei pode até trocar de roupa, pode até ser deposto, mas a plebe perdeu. O trono já tem dono e é só aguardar.  

Dentro, no meu jardim, que é um pequeno quadrado no mundo, uma grande mão rompeu a terra. Ergue-se para o céu. No fim da tarde, é a única que brilha ao sol. Resplandece a luz derradeira, erguendo-se no rumo de Deus, como em eterna súplica: Senhor, tende piedade de nós! 


Comments

Popular posts from this blog

I upset people (This may be the first of a series)

I feel I upset many people. Maybe it is something I do, but the feeling I get is that what upsets them is the way I live, the choices I make. People get upset with me when they hear I don't believe in God. If I tell them that I once did, but have lost my faith after I lost my first child, a premature baby, they fail to grasp the complexity of it. They look at me with irritating condescendent pityful eyes and they think I can be "fixed." To be fair, maybe I fail to help them understand that after what happened to me, God as I came to know it and most people of Christian beliefs do, is of no use to me.  God proved himself either nonexistent or useless to me when my first born died and when I almost followed him due to Eclampsia and Hellp Syndrome (Go ahead and google it! Unless you are doctor or had someone in the family who had this, you will never know it.) He did not save my baby and he did not spare me the excruciating suffering I had to endure. And if you think I...

The child that did not stay

I remember expecting a child that never came, a child I never held in my arms. I remember expecting a child who would have his father's hair, his kind eyes.  He would be curious of the world and I would follow closely all the things he would see with enchanted eyes. Everything would be new for his new eyes. Those were the words of a song about someone else's child, a song I used to listen to while waiting for this child. I remember dreaming of his future, of his smiles. I remember my hopes for him. He did not want me, this child. He did not stay.  He was not interested in the playground in front of the building we live. He was not interested in having my hand holding his while he walked his first steps. He did not care about the flowers, leaves, little dry sticks that fall from the trees in our neighbourhood. He did not want to listen to the slightly out of tune lullabies I was going to sing or the stories I would read at bedtime. He did not even care for the milk, all th...

No espelho

  Olhei hoje para o espelho e me vi mais serena, me enxerguei com mais leveza. Não que esteja de fato mais leve, eu acho. Ou será que estou? Tenho ainda infinitas incertezas e dúvidas aos milhares, mas a imagem que me olhou de volta do espelho, não me olha com tristeza, dor pânico.     A imagem que vejo nesse espelho é de     calma, no olhar certa paz, talvez de se entender humana, imperfeita e aceitar essa condição.     Aqui, deste lado que estou, me observando no espelho, sinto ainda o coração encolher como se uma mão o quisesse esmagar. Encolhe-se para sobreviver e expande-se em seguida. Ao encolher-se, a respiração dá uma pausa e uma bolha de cristal sobe em refluxo, pausando ali no meio da goela. Assim que pode, o coração retorna a seu pulsar, seu ir e vir. Permanecem ali as dúvidas, as exigências, as demandas, mas também os desejos de só ser, irresponsavelmente ser e atender a cada quimera. Porque a vida é curta! A vida é sopro!    E o ...